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Coroa de Eugênia, Imperatriz Consorte da França |
Eis-nos novamente
aqui para trazer aos leitores mais um artigo desta série que pretende ser uma
breve réplica, e um pequeno esclarecimento, de questões que ultimamente se
fizeram em voga pelas acusações que sofreram nossos príncipes. Não pretende é
lógico esgotar o tema e ser completamente definitiva.
Tratamos já no
primeiro artigo sobre a autoridade de Santo Tomás e sobre a necessidade
de crer, ou ao menos consentir, que a monarquia seja a melhor forma de governo,
não tratamos ainda se é errado admitir outra forma de governo como legítima.
Trataremos antes da questão levantada pelos acusadores, que é a questão de
haver mal menor em política, ou seja, se entre duas opções más, possamos
escolher a que acarreta menos males, seja a de um candidato à postos de
governo, seja quanto à forma de governo, ou forma de Estado em si. Ora, dizem
eles que um mal menor é sempre mal, e portanto seria imoral escolhê-lo.
Devo, no entanto,
notar que toda ufania psitacídea com a qual eles dizem ser meros repetidores
de Santo Tomás se acaba aqui. Explico. Chama-se Mestre Principal o que possui a
ciência perfeita, nos dando a conhecer a verdade pela evidência e pela
demonstração, e também é claro, pelo peso de sua própria autoridade. Assim
sendo, um mero repetidor não tem autoridade própria, não pode atrever-se a
interpretar ou desenvolver a doutrina do mestre principal, já um Mestre
Auxiliar, participa, ainda que imperfeitamente da ciência e doutrina do Mestre
Principal e pode, portanto, interpretar e desenvolver até certo grau,
dependente e participado e até impor certas sentenças pelo peso da própria
autoridade. Assim, em filosofia, Santo Tomás é um mestre principal, já Suarez
ou Cayetano são mestres auxiliares. (1) Nossos adversários se pretendem
repetidores, mas ao soltar a tremenda asneira sobre a inexistência de mal menor
em política, desviam-se daquele que pretendem repetir, e impõe por autoridade
própria (o que não têm) uma opinião pessoal, disfarçando-se assim em mestres
auxiliares.
Mas vamos diretamente
ao ponto, já que ao acusador cabe o ônus da prova, e repitamos aqui o que nos
disse realmente Santo Tomás em o Governo
do Príncipe:
“Assim, porém, como é ótimo o regime do rei, também é péssimo o
governo do tirano. Opõe-se à politia a democracia, sendo ambas, como do exposto
se patenteia, governo que por muitos se exerce; à aristocracia a oligarquia,
exercendo-se ambas por poucos; e o reino à tirania, exercendo-os ambos um só.
Que, porém, é o reino o melhor regime, mostrou-se antes. Se, pois, ao ótimo se
opõe o péssimo, força é que a tirania seja o pior. Além disso: a virtude unida
é mais eficaz para realizar o efeito, do que a dispersa ou dividida. Em
verdade, muitos simultaneamente congregados arrastam o que divididamente por
partes não poderia ser arrastado por cada um isoladamente. Assim como é mais
útil seja o mais possivelmente una a virtude que opera para o bem, a fim de ser
mais poderosa para a sua operação, da mesma forma é ela mais nociva do que
dividida, se, una, opera o mal. Opera em
dano da multidão a força dum chefe injusto, quando desvia somente para seu
próprio bem o bem comum da multidão. Conseqüentemente, assim como, num
governo justo, tanto mais útil é ele, quanto mais una for a chefia, de sorte
que é o reino melhor que a aristocracia e esta que a politia; também, ao
inverso, se dará no governo injusto, que, quanto mais una for a chefia, tanto
mais nocivo há de ele ser. Assim, mais nociva é a tirania que a oligarquia, e
esta do que a democracia.
Mais: o que faz injusto um governo é o tratar-se, nele, do bem
particular do governante, com menosprezo
do bem comum da multidão. Logo, quanto mais se afasta do bem comum, tanto
mais injusto é o regime; ora, mais se afasta do bem comum a oligarquia, na qual
se busca o bem de uns poucos, do que na democracia, na qual se procura o de
muitos; e ainda mais se aparta do bem comum na tirania, em que se busca somente
o bem de um; porquanto da totalidade é mais próximo o muito que o pouco, e o
pouco que um só. É, pois, o governo do tirano o mais injusto. Semelhantemente
se tornará evidente a quem considerar a ordem da divina providência, que tudo
dispõe pelo melhor. Pois, nas coisas, o bem provém duma única causa perfeita, congregando-se
tudo aquilo que pode coadjuvar ao bem, enquanto o mal, em particular, provém dos defeitos
particulares. Assim, não há beleza no corpo, a não ser que todos os membros
estejam dispostos convenientemente; apresente-se inconvenientemente qualquer membro,
e ter-se-á a feiura E assim é que, por modos vários, procede a feiura de
muitas causas, enquanto a beleza por um só modo e de uma só causa perfeita. E
assim se dá com todos os bens e males, como que por providência de Deus, a fim
de que o bem proveniente de uma só causa seja mais forte, entretanto, o mal,
proveniente de muitas causas, seja mais fraco. Releva, pois, que o governo
justo seja de um só, para ser mais forte. Porque, caso se afaste da justiça,
mais convém seja de muitos, que entre si se atrapalhem, para ser mais fraco.
Entre os regimes injustos é, portanto, o mais suportável a democracia, e o
pior, a tirania.
Isso se evidencia sobremaneira, considerando-se os males que dos
tiranos provêm, visto como, quando o tirano, desprezando o bem comum, vai no
encalço do particular, segue-se que agrave de muitas formas os súditos,
conforme as diversas paixões que o dominem, levando a cobiçar determinados
bens. O que é possuído da paixão da cupidez rouba os bens dos súditos; daí
Salomão (Pr 29, 4): “O rei justo eleva sua terra; destrói-a o homem avaro”. Se,
porém, o subjuga a paixão da ira, por nada derrama sangue, donde o ser dito por
Ezequiel (22, 27): “Os seus príncipes são, no seu meio, como lobos que
arrebatam a presa para derramar sangue”. Por isso admoesta o sábio (Eclo. 9, 18)
que se deve fugir de tal regime, dizendo: “Fica longe do homem que tem o poder
de matar”; visto que não por justiça, senão pela força, mata por desregramento
da vontade. Dessa forma, nenhuma segurança haverá, senão que serão incertas
todas as coisas, uma vez que se afasta o direito, não podendo haver firmeza no
que quer que seja, desregramento estranho. Nem se fazem agravos aos súditos só
nas coisas corporais, mas ainda se lhes impedem as espirituais, já que o que
prefere mandar a beneficiar impede todo o proveito dos súditos, suspeitando ser
prejuízo ao seu domínio iníquo toda excelência dos súditos. Porque aos tiranos
são mais suspeitos os bons que os maus, e sempre lhes é de temer a alheia
virtude. Eis a razão pela qual pretendem os ditos tiranos que os seus súditos
não se tornem virtuosos nem adquiram o espírito de magnanimidade que lhes faça
intolerável a sua iníqua dominação. Pretendem também que não se firme entre os
súditos a aliança da amizade e gozem reciprocamente do benefício da paz, de
modo que, não confiando um no outro, nada possam tramar contra o senhorio
deles. Com esse fim, semeiam discórdias entre os súditos, alimentam-nas, se
nascem, proíbem o que promove o entendimento entre os homens, como conúbios,
festins e outras coisas do gênero, pelas quais costuma gerar-se a familiaridade
e a confiança entre eles. Diligenciam, outrossim, para que não se façam
poderosos ou ricos, porquanto, suspeitando dos súditos segundo a consciência da
sua própria malícia, assim como eles, tiranos,
usam do seu poder e riquezas para prejudicar, igualmente temem que poder e
riquezas dos súditos se lhes tornem nocivos. Daí o dizer-se do tirano também em
Jó (15,21): “O ruído do terror lhe está sempre ao ouvido, e, embora haja paz
(isto é, sem ninguém intentar mal contra ele), sempre imagina ciladas”.
Resulta disso que – quando
os dirigentes, que deveriam induzir os súditos às virtudes, nefandamente lhas
detestam e vedam-nas o quanto podem – poucos virtuosos há sob os tiranos.
Pois, segundo a sentença de Aristóteles (Ética a Nicômaco, I, 3, 1095 b 28-30),
os varões fortes encontram-se junto daqueles que honram os mais fortes, e diz
Túlio (Cícero, Tusculanas, I, 2; cf. Agostinho, Cidade de Deus, V, 13): “Ficam
sempre rasteiras e pouco vigoram as coisas que todos rebaixam”. É também
natural degenerem para um caráter servil e se façam pusilânimes para toda obra
viril e esforçada homens educados sob o temor: o que experimentalmente se
manifesta nos países que por muito tempo estiveram sob um tirano. Por isso é
que diz o Apóstolo (Col 3,21): “Pais, não posto estar à mercê duma vontade
estranha, para não dizer do provoqueis à indignação vossos filhos, para que não
se tornem mesquinhos de ânimo”. E Salomão (Pr 23,12), considerando esses danos
provenientes da tirania, diz: “Reinando os ímpios, fazem-se ruínas de homens”,
pois que, pela maldade dos tiranos, os governados desfalecem na perfeição das
virtudes; e volta a dizer (Ibid. 29,2): “Quando os ímpios assumem o governo,
geme o povo como que reduzido à servidão”; e outra vez (28,28): “Quando se
levantam dos ímpios, ocultam-se os
homens”, para fugirem à crueldade dos tiranos. Nem é para admirar, por isso,
que nada difere da fera o homem que governa sem razão e sim segundo o
desregramento da sua alma, razão de dizer Salomão (Pr 28,15): “Leão enfurecido
e urso faminto é um príncipe ímpio sobre um povo pobre”, motivo por que dos
tiranos se esconderem os homens como de feras cruéis, parecendo ser a mesma
coisa submeter-se a um tirano que prostrar-se ante uma fera bravia.”
(2)
Considerando então que uma monarquia liberal é equiparável à uma
tirania, justamente porque não há tirano pior que um liberal, e que isso se dá
justamente porque o liberalismo é um desvio do bem comum, ao mesmo tempo em que
um monarca liberal ao invés de excitar os súditos à virtude, com seu exemplo
vedam o acesso à ela, exatamente como disse acima Santo Tomás do tirano. Agora,
resta saber o que é pior, uma monarquia corrompida, uma aristocracia
corrompida, ou uma democracia (divergem os tradutores no termo, que nessa
versão é politia), e se dentre tais regimes corruptos poderíamos escolher sem
culpa o que é menos mal. Para isso vamos ao texto de Santo Tomás:
“Como, todavia, entre dois, dos quais, tanto de um como de outro,
está iminente o perigo, FAZ-SE MISTER ESCOLHER; cumpre que, com muito mais
preferência, SE ESCOLHA AQUELE DO QUAL DERIVA MENOR MAL. Ora, da MONARQUIA QUE
EM TIRANIA SE CONVERTE, SEGUE-SE MENOR MAL DO QUE DO GOVERNO DE MUITOS NOBRES,
AO SE CORROMPER. Verdadeiramente, a dissensão que, o mais das vezes, deriva do
governo de muitos, contraria o bem da paz, que é o princípio na multidão
social, bem esse que pela tirania não se perde, mas somente se impedem alguns
dos bens dos homens particulares, salvo se há excesso de tirania, que se agrave
contra toda a comunidade. Portanto, há de se decidir de preferência pelo
governo de um só do que pelo de muitos, se bem que de ambos decorram perigos.
Mais ainda: parece se deva mais fugir daquilo de que, com mais
freqüência, podem advir grandes perigos; ora, seguem-se do governo de muitos os
maiores perigos da multidão, mais amiúde do que do governo de um só, porque
mais vezes sucede decair da intenção do bem comum algum dos muitos, do que o
governante único. Desvie-se, com efeito,
da intenção do bem comum qualquer um dos muitos que presidem, e ameaça de
perigo de dissensão a multidão dos súditos, porque, discordando os príncipes,
segue-se em conseqüência a discórdia na multidão. E, se um só preside,
olha, as mais das vezes, pelo bem comum; ou, se se apartar da intenção desse
bem, não se segue imediatamente que pretenda a opressão total dos súditos, o
que é o excesso da tirania e ocupa o grau máximo da malignidade do governo,
como acima vai demonstrado. Por isso, são mais de evitar os perigos
provenientes do governo de muitos, que os do governo de um só.
Além disso, não menos, senão muito
mais freqüente é transformar-se em tirania o governo de muitos que o de um só.
Em verdade, nascida a dissensão pelo governo múltiplo, amiúde sucede superar um
aos mais e usurpar para si somente o domínio da multidão, o que claramente se
pode ver no acontecido com o andar do tempo. Pois, terminou em tirania quase
todo regime de muitos, como se patenteia maximamente na república romana, a
qual, como tivesse sido longo tempo administrada por muitos magistrados,
despertando muitos ódios, dissensões e guerras civis, veio a cair sob os mais
cruéis tiranos. E, se alguém considerar diligentemente, em todo o mundo, os
fatos passados e os que ora se dão, há de achar ter havido mais tiranos nas
terras governadas por muitos, do que nas governadas por um só. Se, portanto, a
realeza, que é o melhor governo de todos, pareça dever evitar-se por causa da
tirania; e se a tirania costuma dar-se não menos, porém mais, no governo de
muitos que no de um só, resta simplesmente ser de mais conveniência viver sob
um rei, do que sob o governo de muitos.
Conclusão: que o governo de um só, absolutamente, é o melhor de que maneira deve a multidão haver-se a
respeito dele, visto como se lhe deve tirar a ocasião de tiranizar e, ainda
quando o faça, há de tolerar-se para evitar maior mal.”(3)
Para facilitar nosso entendimento nessa questão citemos também a Garrigou-Lagrange:
“‘Segue-se, diz Santo Tomás (cap. III), que a monarquia é o
melhor dos governos’, o mais uno, o mais durável, aquele que é mais forte para
promover o bem comum; ‘a monarquia, diz ele ibid., é melhor que o regime
aristocrático, e este, melhor que a república’. A mesma doutrina é conservada
na Suma Teológica onde é dito, Ia. q. 103 a. 3, sobre o governo do universo:
‘Optima gubernatio est quae fit per unum’. O melhor governo é o de um só. [...]
É verdade, como é dito na presente obra (Cap. III), que, em virtude
do princípio *optimi corruptio pessima* [a corrupção do melhor é a pior], a
tirania é pior do que a oligarquia (que é a degeneração do poder
aristocrático), e a oligarquia é pior do que a democracia (que, na terminologia
de Santo Tomás, é a alteração ou corrupção da república).
Os males da tirania não são menos bem notados (Cap. III), tanto na
ordem espiritual como na ordem temporal: [...]
Santo Tomás acrescenta, no entanto (cap. V), que se o governo de um só, tornando-se
tirânico, todavia não se encarniçar, sem medida alguma, contra a multidão
inteira, ele é ainda preferível aos demais. O governo coletivo, a partir do
momento em que a discórdia nele se introduz, transforma-se quiçá mais
frequentemente, com efeito, em opressão. Donde resulta, portanto, que é mais
vantajoso viver sob um rei. É o melhor regime. Reencontramos a mesma conclusão
na Suma Contra os Gentios, livro IV, cap. 76, n° 4, a propósito do governo da
Igreja.””(4)
Temos então, bem fundamentado e comprovado, que segundo Santo
Tomás, em questão política, não existe imoralidade em escolher a opção da qual
decorrem menos males, e que mesmo uma monarquia desviada de seus fins é
preferível à outro regime também desviado de seus fins.
(1)
R.P. ÁLVARO CALDERÓN, “La Lámpara bajo el celemín,” Rio Reconquista, Buenos
Aires, 2009, pág. 63-64
(2) SANTO TOMÁS DE AQUINO, “Governo do
Príncipe,” Lib. III, Cap. IV, 10-13
(3) SANTO TOMÁS DE AQUINO, "Governo do
Príncipe,” Lib. III, Cap. VI, 15.16.
(4) GARRIGOU-LAGRANGE, Reginald, “Prefácio
ao Governo do Príncipe”.