sábado, 1 de outubro de 2011

Gustavo Corção e a Monarquia

Gustavo Corção e a Monarquia


Gustavo Corção escreveu uma série de belos artigos de caráter memorialístico, lembrando algumas figuras que o marcaram quando menino. Num deles, publicado no dia 5 de dezembro de 1974, recorda Seu João Martins Duarte, jardineiro português, que serviu à sua família:

Vejo-o plantado no centro de nossa sala de jantar, enorme, braços abertos a trovejar:

- Ora que desgraça minha Senhôra, que grande desgraça!

Mamãe interrompendo um bolso de colete, sorria para tranquilizá-lo e dizia :

- Vamos vivendo, seu João, vamos vivendo, e como vê as crianças estão vivas e fortes.

- Estão lindas, exclamava ele com a fisionomia iluminada, e logo subitamente franzida numa tristeza secreta.

- E o senhor? Como deixou sua gente em Portugal?

Seu João soltou então um grande rugido que a custo reprimia.

- Ai, minha senhôra, os maçons mataram nosso Rei, e mais o Príncipe Luiz. Estamos sem Rei. É uma desgraça, uma grande desgraça...

E para bem exprimir seus sentimentos, Seu João, no tom mais respeitoso do mundo, soltava palavrões (...). Foi nesse tempo que ouvi as lições de uma insuspeitada sabedoria que naquele tempo nos fazia sorrir.

Foi preciso viver 77 anos para descobrir que valeu a pena prestar ouvido as palavras aladas de seu João. Sobretudo as que exprimiam a sua filosofia política.

Uma noite resolvi enfrentar seu máximo furor, e perguntei-lhe porque se apegava tanto à monarquia e tanto se enfurecia contra a república. Com palavras e argumentos precoces para meus nove anos de menino vivo nascido numa república, tentei confundir o lusitano perguntando-lhe porque razão fazia questão de um Rei.

Erguendo seus quase dois metros de altura, e ainda avantajando com os braços enormes atirados ao teto, seu João soltou um rugido de leão flechado; mas depois começou a falar pausadamente.

O menino era muito novo; a experiência da vida é que ensina. Ora, o que ela ensina é que, para governar um povo nada se inventou melhor do que um Rei. E seu João repetia com uma voz grave e lenta : "Um RRRei! Sim, meu menino, um Rei".

Sentando-se com as mãos nos joelhos, debruçado e didático prosseguiu:

- O que está lá e se diz presidente, o tal de Bombardino Rachado (Bernardino Machado), sai à rua com um guarda-chuva e diz que é igual a um de nós, pedreiro como eu ou carpinteiro como José. Ora mìo mìnino, se ele é igual a João Martins Duarte, pedreiro, como é que pode governar Portugal?

E depois de uma pausa para meditação seu João me deixou cravado na memória esse argumento sublime e definitivo:


- Naquele tempo (o da monarquia) mìo mìnino, quando Sua Majestade saía de seu Palácio de Viçosa, quem estivesse nas ruas, alçava-se nas pontas dos pés, quem estivesse nas lojas assomava à porta, quem estivesse em casa chegava à janela, a GENTE VIA O REI PASSAR".

Naquele tempo o menino de 9 anos ria-se do fantástico argumento de seu João Martins Duarte e precisou viver 77 anos para desconfiar que se ria com riso errado.

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