domingo, 18 de setembro de 2011

As relações entre o Estado e a Família.

As relações entre o Estado e a Família.


Giorgio del Vecchio



"A família, como é sabido, precedeu historicamente o Estado, e as normas fundamentais, por que todavia se rege, não tiveram certamente origem estatal, senão que derivam diretamente da natureza, tanto no que concerne ao vínculo conjugal, como às relações entre genitores e filhos. (...) originariamente a organização familiar e especialmente a autoridade do " pater familias", sendo embora ded natureza privada, tiveram simultâneamente caráter semipolítico. Tendo-se instaurado, progressivamente, sobre as famílias a autoridade do Estado, avocou esta a si alguns dos poderes até então exercidos pelos pais, e nomeadamente a função da justiça. Entanto, é característico o fato de ainda hoje a sociedade doméstica conservar os vestígios de uma sociedade "sui-generis", e de nela continuar a exercer-se até uma certa "justiça penal autônoma", com o nome de "poder disciplinar". Poderiam fazer-se análogas observações a respeito de outros ramos do Direito, nas quais igualmente a derivação a partir do Estado reveste significado sobretudo formal, a fim de tornar possível a unidade do sistema:mas não destroi a real espontaneidade das produções das consciências individuais e dos grupos sociais, saídas imediatamente das próprias consciências, "natura dictante".
Importa, além disso, ter em conta que a família é um instituto jurídico, mas não apenas jurídico. Compreende vínculos e deveres morais, não menos importantes que os jurídicos; e isto transparece até nas fórmulas usadas pelo Código Civil *, por exemplo, quando este, após ter afirmado que o matrimônio impõe a ambos os cônjuges a obrigação de manter, educar e instruir a prole, declara que " a educação e a instrução "devem ser conformes aos princípios da moral" (art.147); e também quando declara que "o filho, qualquer que seja sua idade, deve honrar e respeitar os genitores" (art. 135), o que evidentemente vai além da simples obrigação jurídica do "non laedere".


Não menos digno de nota é o fato de, em quase todos os povos, o instituto do matrimônio, fundamento da família, ter sempre tido e ter caráter religioso. Do mesmo modo que o grande mistério do nascimento e da morte, assim também o contrair um vínculo perpétuo entre dois seres com o fim da procriação põe o espírito humano, por assim dizer, na presença da divindade; donde a necessidade geralmente sentida de que tal vínculo não tenha apenas sanção civil, mas também consagração religiosa. É o que jaz transluz da famosa definição de Modestino, segundo o qual o matrimônio é "divini et humani juris communicatio". Para o direito canônico, como é sabido, o matrimônio é elevado à dignidade de sacramento; daí deriva sua indissolubilidade. A vigente legislação italiana, ** conforme os acordos lateranenses de 1929, reconheceu a plena validade do matrimônio celebrado perante um ministro do culto católico segundo os cânones da Igreja, salva a obrigação de participar à Comuna, para efeito de ser transcrito nos registros do estado civil. (...) Por outro lado, continuou em vigor a instituição do matrimônio puramente civil(...).
Faltaria ao seu dever e missão o Estado que não respeitasse a integridade da família, natural e legalmente constituída de acordo com os mais profundos sentimentos do espírito humano. A sociedade doméstica deve ter seu posto legítimo no seio daqueloutra sociedade mais vasta que é o Estado. Pelo que, de há muito foi afirmado com maestria e autoridade que "se o homem, se sua família, entrando a fazer parte da sociedade civil, encontrassem no Estado não auxílio, mas ofensa, não tutela, mas diminuição dos direitos próprios, a convivência civil tornar-se-ia mais evitada que desejada". ( Encíclica Rerum novarum). ***
A esfera de autonomia reservada à família, como a reconhecida ao indivíduo e a outras entidades, não exime o Estado da obra de vigilância, de coordenação e de integração que lhe compete exercer dentro do âmbito de seu legítimo poder. Se a obrigação de manter, educar e instruir os filhos não for cumprida pelos genitores ( e note-se que tal obrigação existe igualmente para com os filhos nascidos fora do matrimônio), seja qual for a causa de tal inadimplemento (incapacidade moral, física ou econômica), (...) recai no Estado o cumprimento da mesma obrigação." ****



Teoria Geral do Estado. Giorgio Del Vecchio. São Paulo. Edição Saraiva.1957. 260 pp.
Texto extraído das pp. 110-112.




*Código civil de 1916.
**Legislação vigente em 1957.
***Rerum novarum. Encíclica do Papa Leão XIII datada de 15 de maio de 1891 e que versa sobre a condição das classes trabalhadoras. Recomenda-se também a leitura da Quadragesimo anno do Papa Pio XI, de 15 de maio de 1931 que dá continuidade ao assunto.
****Referência ao Princípio da "Subsidiariedade" sobre o qual escreveremos oportunamente.

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