sábado, 29 de setembro de 2012

RITUAL DA BENÇÃO E COROAÇÃO DO REI (V - FINAL)


Breve histórico da formação do ritual e da questão de sua natureza sacramental

Dom Pedro II, óleo sobre tela anônimo.


Do juramento feito por Teodósio II (Imperador Bizantino de 408 a 450) a Proclo de Constantinopla (Patriarca de 434 a 446), surgiram as primeiras menções históricos de um rito de investidura do poder real. De fato da possibilidade de convocar um concílio Ecumênico decorria da parte do imperador bizantino uma obrigação para com a Igreja, e esta exigia-se-lhe um compromisso: uma profissão de fé estritamente ortodoxa, o respeito pelos dogmas e pela hierarquia eclesiástica que devia ser professado antes da coroação.*
Inspirado neste modelo bizantino, o Rei Wamba de Aragão, havia sido coroado, no que não foi seguido pelos demais reinos hispânicos, pois o juramento implicava uma submissão e dependência direta ao clero, ainda que segundo os canonistas da época, essa submissão se dava rationi peccati, ou seja para questões que a Igreja ensina como pecado.[1]
A coroação surge como homologação para uma situação de fato. E a partir de Carlos Magno vai adquirindo um significado análogo ao da eleição dos generais. O Sumo Pontífice atua assim como executor do plano providencial de Deus, que é o verdadeiro doador do poder. O imperador é portanto Coroado por Deus - a Deo Coronatur. Ainda com Carlos Magno, o juramento torna-se mútuo, pois o papa Leão III fez juramento de fidelidade a Carlos Magno antes de coroá-lo imperador em 800, e este também, por sua vez, fez um compromisso similar ao dos imperadores bizantinos.[2]
Este juramento de Leão III, causou, no entanto, controvérsias agudíssimas entre a Igreja e o Sacro Império Romano-Germânico,  o que fez o Arcebispo de Reims tomar partido contra o papa são Nicolau na questão das investiduras durante o século IX. A controvérsia teve seu fim, do ponto de vista teológico, com a correspondência de São Gregório VII ao arcebispo Hermann de Metz, e a promulgação do ‘Dictatus Papae’, no século XI somente, onde se denota a emancipação do Poder Pontifício em questões temporais, pois “O papa pode dispensar o cumprimento do juramento de fidelidade aos injustos (XXVII)” e “Apenas o pontífice romano pode depor ou absolver os bispos (III)”, bem como  “É-lhe permitido depor os imperadores.”
Note-se bem que a deposição dos imperadores, preconizada por São Gregório VII, diz respeito aos Imperadores Romanos-Germânicos, não aos imperadores bizantinos, ou aos senhores de outros reinos, pois considera-se que o Imperador Constantino, com sua “Doação” havia entregue o poder temporal do ocidente diretamente ao papa são Silvestre I, e que portanto, com a ascensão de Carlos Magno, este Império era mandatário do papa, o que se deduz pela proposição VIII, do Dictatus: “Somente ele pode usar as insígnias imperiais”.
Surgem então a escola dos teóricos do poder real, que irá buscar uma solução teológica sobre os limites da fidelidade do papa ao imperador, e a natureza da submissão dos monarcas, in ratione peccati, ao clero.
Desctacamos Jonas, Bispo de Orleans (818), que considera o rei como pertencente à ordem dos laicos (De institutione laicali e De institutione regia) e que ele deve “primeiro do que tudo ser o defensor da Igreja e dos servidores de Deus. O seu dever é favorecer com sagacidade a salvação e o ministério dos padres”[3] e Hincmar, Arcebispo de Reims (835-882), escreveu um dos primeiros rituais de sagração (869) que constava principalmente da professio do rei, cuja violação o tornaria culpado de perjúrio e sujeito à excomunhão, como ele mesmo teorizou em De ordine palatii (882) Proposição que defende em carta ao jovem Luis III: “Lembrai-vos, suplico-vos, da professio que prometes respeitar no dia de vossa sagração... Professio que assinastes com a vossa mão e ofereceste a Deus sobre o altar em presença de todos os bispos.” A professio, portanto, segundo Hincmar, faz dele um membro do clero. [4]
Retomando o argumento de Hincmar, e analisando pormenorizadamente o ritual da Sagração do Rei, Pedro de Blois, considera também o rei como clérigo, em virtude da unção do santo crisma, que ele não hesita em equiparar a um Sacramento. E assim o escreve sobre Henrique I, da França: “Devo reconhecer que nos santifica ajudar o senhor rei, porque ele é santo e cristo do senhor, e não foi em vão que recebeu o sacramento da unção real, cuja eficácia, embora ignorada ou posta em dúvida, será plenamente confirmada pela desaparição da peste inguinal e pela cura das escrófulas”.
Aqui citou-se uma qualidade taumatúrgica dos reis, pois se dava, não raras vezes, que após a sagração uma multidão de enfermos se juntava às portas da igreja buscando ser tocada pelo rei, recém-sagrado, e menos raros eram os casos em que os doentes se curavam, como faz notar Pedro de Blois, como uma confirmação milagrosa da graça sacramental que fora infundida no soberano.
Os Ordos de Fulrad (século X), de São Luiz (século XIII), e finalmente o Pontifical Romano, que foi usado na coroação dos nossos imperadores, Pedro I e Pedro II, com forma fixada pelos decretos do Concílio de Trento (século XVI), irão sintetizar as teorias do poder real dos séculos precedentes, fazendo o rito da coroação constar, da professio, ou juramento, seguida de unção e por fim coroação. O Ordo de são Luiz, no entanto introduz a aclamação popular, que aparenta estar suprimida no Pontifical do século XVI, não deixando, no entanto, fechada a questão da natureza sacramental da Sagração Real. 
Claro que, devemos considerar que o Concílio de Trento ao definir que só há Sete Sacramentos, aparenta ter dirimido a questão, sem no entanto delimitar ou distinguir o sentido em que a palavra sacramento era usada pelo teóricos antigos em relação à Sagração Real. Pois, antes de Trento o uso da palavra Sacramento, era, em sentido lato, relacionada a tudo que é sagrado, o que evidentemente causava disputas entre teólogos sobre quais eram os que infundiam ou aumentavam a graça em sentido estrito e por instituição do Divino Mestre. 
Bossuet (século XVII), teorizando não a posição condenável de oitavo sacramento da sagração, mas tendo em vista o próprio ritual aprovado pelo Concílio de Trento, considera a Sagração Real, como relacionada ao Sacramento da Ordem, ora, por sua semelhança à Sagração dos Bispos, ora por no mínimo se equivaler à tonsura clerical, tendo em vista o privilégio do rei recém-sagrado de comungar e tomar a ablução diretamente do cálice do bispo, como vimos no Ritual transcrito do Pontifical Romano.
Levando em conta então esse aspecto considerado por Bossuet, podemos considerar, e até tomar o partido pela hipótese da Sagração Real ter natureza sacramental, uma vez que a Igreja não chegou à um veredicto definitivo. No entanto, tristemente vemos que mesmo nas Monarquias modernas, mesmo católicas, se substituiu a Graça Sacramental pelo juramento à Constituição, que poderia muito bem ser feito sem detrimento daquela, como o era no Brasil. Atualmente, só há dois soberanos Ungidos com um Ritual semelhante, um deles é a Rainha Elizabeth II da Inglaterra (a rigor inválida por ser feita por um 'bispo' anglicano, mas o simples fato de seu poder ter sido conferido em um rito religioso, já espanta o mundo moderno) e o outro é Rei do Lesoto, Letsie III, que foi sagrado e coroado a 31 de outubro de 1997, pelo Arcebispo de Maseru, o que faz dele o único soberano católico ungido no mundo.



[1] TOUCHARD, Jean, "História das Ideias Políticas", Publicações Europa-América, 1959, pág. 16
[2] TOUCHARD, Jean, Op. Cit., págs. 24 e 25
[3] TOUCHARD, Jean, Op. Cit., pág. 29
[4] TOUCHARD, Jean, Op. Cit., pág. 30

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