Breve histórico da formação do
ritual e da questão de sua natureza sacramental
Dom Pedro II, óleo sobre tela anônimo. |
Do juramento feito por Teodósio II
(Imperador Bizantino de 408 a 450) a Proclo de Constantinopla (Patriarca de 434
a 446), surgiram as primeiras menções históricos de um rito de investidura do
poder real. De fato da possibilidade de convocar um concílio Ecumênico decorria
da parte do imperador bizantino uma obrigação para com a Igreja, e esta
exigia-se-lhe um compromisso: uma profissão de fé estritamente ortodoxa, o
respeito pelos dogmas e pela hierarquia eclesiástica que devia ser professado
antes da coroação.*
Inspirado neste modelo bizantino, o Rei
Wamba de Aragão, havia sido coroado, no que não foi seguido pelos demais reinos
hispânicos, pois o juramento implicava uma submissão e dependência direta ao
clero, ainda que segundo os canonistas da época, essa submissão se dava rationi
peccati, ou seja para questões que a Igreja ensina como pecado.[1]
A coroação surge como homologação para
uma situação de fato. E a partir de Carlos Magno vai adquirindo um significado
análogo ao da eleição dos generais. O Sumo Pontífice atua assim como executor
do plano providencial de Deus, que é o verdadeiro doador do poder. O imperador
é portanto Coroado por Deus - a Deo Coronatur. Ainda com Carlos
Magno, o juramento torna-se mútuo, pois o papa Leão III fez juramento de
fidelidade a Carlos Magno antes de coroá-lo imperador em 800, e este também,
por sua vez, fez um compromisso similar ao dos imperadores bizantinos.[2]
Este juramento de Leão III, causou, no
entanto, controvérsias agudíssimas entre a Igreja e o Sacro Império Romano-Germânico,
o que fez o Arcebispo de Reims tomar partido contra o papa são Nicolau na
questão das investiduras durante o século IX. A controvérsia teve seu fim, do
ponto de vista teológico, com a correspondência de São Gregório VII ao
arcebispo Hermann de Metz, e a promulgação do ‘Dictatus Papae’, no século XI
somente, onde se denota a emancipação do Poder Pontifício em questões
temporais, pois “O papa pode dispensar o cumprimento do juramento de fidelidade
aos injustos (XXVII)” e “Apenas o pontífice romano pode depor ou absolver os
bispos (III)”, bem como “É-lhe permitido depor os imperadores.”
Note-se bem que a deposição dos
imperadores, preconizada por São Gregório VII, diz respeito aos Imperadores
Romanos-Germânicos, não aos imperadores bizantinos, ou aos senhores de outros
reinos, pois considera-se que o Imperador Constantino, com sua “Doação” havia
entregue o poder temporal do ocidente diretamente ao papa são Silvestre I, e
que portanto, com a ascensão de Carlos Magno, este Império era mandatário do
papa, o que se deduz pela proposição VIII, do Dictatus: “Somente
ele pode usar as insígnias imperiais”.
Surgem então a escola dos teóricos do
poder real, que irá buscar uma solução teológica sobre os limites da fidelidade
do papa ao imperador, e a natureza da submissão dos monarcas, in
ratione peccati, ao clero.
Desctacamos Jonas, Bispo de Orleans
(818), que considera o rei como pertencente à ordem dos laicos (De
institutione laicali e De institutione regia) e que ele
deve “primeiro do que tudo ser o defensor da Igreja e dos servidores de Deus. O
seu dever é favorecer com sagacidade a salvação e o ministério dos padres”[3] e Hincmar, Arcebispo de Reims (835-882), escreveu
um dos primeiros rituais de sagração (869) que constava principalmente da professio do
rei, cuja violação o tornaria culpado de perjúrio e sujeito à excomunhão, como
ele mesmo teorizou em De ordine palatii (882) Proposição que
defende em carta ao jovem Luis III: “Lembrai-vos, suplico-vos, da professio que
prometes respeitar no dia de vossa sagração... Professio que
assinastes com a vossa mão e ofereceste a Deus sobre o altar em presença de
todos os bispos.” A professio, portanto, segundo Hincmar, faz
dele um membro do clero. [4]
Retomando o argumento de Hincmar, e
analisando pormenorizadamente o ritual da Sagração do Rei, Pedro de Blois,
considera também o rei como clérigo, em virtude da unção do santo crisma, que
ele não hesita em equiparar a um Sacramento. E assim o escreve sobre Henrique
I, da França: “Devo reconhecer que nos santifica ajudar o senhor rei, porque
ele é santo e cristo do senhor, e não foi em vão que recebeu o sacramento da
unção real, cuja eficácia, embora ignorada ou posta em dúvida, será plenamente
confirmada pela desaparição da peste inguinal e pela cura das escrófulas”.
Aqui citou-se uma qualidade
taumatúrgica dos reis, pois se dava, não raras vezes, que após a sagração uma
multidão de enfermos se juntava às portas da igreja buscando ser tocada pelo
rei, recém-sagrado, e menos raros eram os casos em que os doentes se curavam, como
faz notar Pedro de Blois, como uma confirmação milagrosa da graça sacramental
que fora infundida no soberano.
Os Ordos de Fulrad (século X), de São
Luiz (século XIII), e finalmente o Pontifical Romano, que foi usado na coroação
dos nossos imperadores, Pedro I e Pedro II, com forma fixada pelos decretos do
Concílio de Trento (século XVI), irão sintetizar as teorias do poder real dos
séculos precedentes, fazendo o rito da coroação constar, da professio, ou
juramento, seguida de unção e por fim coroação. O Ordo de são Luiz, no entanto
introduz a aclamação popular, que aparenta estar suprimida no Pontifical do
século XVI, não deixando, no entanto, fechada a questão da natureza sacramental
da Sagração Real.
Claro que, devemos considerar que o
Concílio de Trento ao definir que só há Sete Sacramentos, aparenta ter dirimido
a questão, sem no entanto delimitar ou distinguir o sentido em que a palavra
sacramento era usada pelo teóricos antigos em relação à Sagração Real. Pois,
antes de Trento o uso da palavra Sacramento, era, em sentido lato,
relacionada a tudo que é sagrado, o que evidentemente causava disputas entre
teólogos sobre quais eram os que infundiam ou aumentavam a graça em sentido
estrito e por instituição do Divino Mestre.
Bossuet (século XVII), teorizando não a
posição condenável de oitavo sacramento da sagração, mas tendo em vista o
próprio ritual aprovado pelo Concílio de Trento, considera a Sagração Real,
como relacionada ao Sacramento da Ordem, ora, por sua semelhança à Sagração dos
Bispos, ora por no mínimo se equivaler à tonsura clerical, tendo em vista o
privilégio do rei recém-sagrado de comungar e tomar a ablução diretamente do
cálice do bispo, como vimos no Ritual transcrito do Pontifical Romano.
Levando em conta então esse aspecto
considerado por Bossuet, podemos considerar, e até tomar o partido pela
hipótese da Sagração Real ter natureza sacramental, uma vez que a Igreja não
chegou à um veredicto definitivo. No entanto, tristemente vemos que mesmo nas
Monarquias modernas, mesmo católicas, se substituiu a Graça Sacramental pelo
juramento à Constituição, que poderia muito bem ser feito sem detrimento
daquela, como o era no Brasil. Atualmente, só há dois soberanos Ungidos com um
Ritual semelhante, um deles é a Rainha Elizabeth II da Inglaterra (a rigor
inválida por ser feita por um 'bispo' anglicano, mas o simples fato de seu
poder ter sido conferido em um rito religioso, já espanta o mundo moderno) e o
outro é Rei do Lesoto, Letsie III, que foi sagrado e coroado a 31 de
outubro de 1997, pelo Arcebispo de Maseru, o que faz dele o único soberano
católico ungido no mundo.
[1] TOUCHARD,
Jean, "História das Ideias Políticas", Publicações Europa-América,
1959, pág. 16
[2] TOUCHARD, Jean, Op. Cit., págs.
24 e 25
[3] TOUCHARD, Jean, Op. Cit., pág. 29
[4] TOUCHARD, Jean, Op. Cit., pág. 30
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